GEOGRAFIA HUMANA

PPGH 90 ANOS: HISTÓRIA, MARCOS E DESAFIOS

As origens da pesquisa e da pós-graduação em geografia no Brasil remontam à própria criação da Universidade de São Paulo, e de seu Departamento de Geografia, no ano de 1934. Vieram na chamada “missão francesa” para fundar a USP dois grandes nomes, que marcariam significativamente a comunidade geográfica durante toda a primeira metade do século passado: Pierre Deffontaintes (1894-1978) e Pierre Monbeig (1908-1987). Ambos tiveram atuação acadêmica destacada, incluindo o fato de terem fundado a Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) nas dependências do Departamento de Geografia que os acolheram, Associação que seria fundamental para o amadurecimento da geografia enquanto um campo disciplinar voltado para a pesquisa, o ensino e também a ação social (Antunes, 2023).

Pierre Monbeig lecionou na USP desde sua chegada – 1935 – até o ano de 1946, quando volta para França e escreve seu Pionniers et Planteurs de São Paulo (1952). Como mostra o Prof. José Bueno Conti (2018, 89), durante os anos em que esteve em atividade na USP, Monbeig orientou no total quatro teses de doutorado (embora ele próprio não fosse portador do título de doutor, mas exercia-o na condição de “notório saber”). Seus orientados / teses orientadas foram as seguintes: 1. Santos e a Geografia Humana do Litoral Paulista, de Maria da Conceição Vicente de Carvalho, (1944); 2. Estudo sobre o clima da bacia de São Paulo, de Ary França (1945). 3. Estudo Geográfico dos Contrafortes Ocidentais da Mantiqueira, de João Dias da Silveira (1946); e 4. Sítios e Sitiantes do Estado de São Paulo, de Nice Lecocq Muller (1946).

A este período da geografia brasileira, Carlos Augusto Figueiredo Monteiro (1980) denominou “implantação da geografia científica” (que iria de 1934 a 1948), quando houve importantes mudanças nas práticas e instituições voltadas para a produção do conhecimento geográfico. Além do Departamento de Geografia da USP, são criados no Rio de Janeiro o Departamento de Geografia da Universidade do Distrito Federal (atual UFRJ, em 1935), assim como o Conselho Nacional de Geografia, órgão do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) (entre 1937/1938). Eram os primeiros passos da transição da produção de uma ciência “amadora” para uma ciência “profissional”, anota Simon Schwartzman (1979). Tratava-se também de uma época em que a geografia cumpria papel fundamental no conhecimento do território brasileiro (em suas dimensões naturais e geoeconômicas), num país que se urbanizava, industrializava e procurava expandir o processo de ocupação do espaço para suas áreas interiores (Penha, 1993).

No que diz respeito à orientação teórica das pesquisas produzidas, Monteiro (1980) lembra que as matrizes de pensamento eram fundamentalmente francesas, e a enorme dependência delas criou certa “tutela” na produção do conhecimento geográfico á época. Manuel Correia de Andrade (1992, 84) destaca que, em grande parte, a geografia brasileira “aplicava” o conhecimento produzido pelos mais destacados geógrafos franceses, sobretudo Paul Vidal de La Blache (1845-1918). Convém mencionar também que outras duas características faziam parte do conhecimento geográfico na Universidade de São Paulo: 1. os trabalhos eram fundamentalmente baseados num “paradigma ambientalista” (Corrêa, 1987), isto é, a natureza da pesquisa geográfica deveria necessariamente explicar como se combinavam os dados do “meio natural” com o “meio técnico”; e 2. Até o ano de 1956, a graduação em geografia era oferecida junto com a história na Universidade de São Paulo; portanto, aqueles que cursavam alguma destas disciplinas na graduação da USP sairiam formados com esta dupla habilitação (Roiz, 2021).

As décadas de 1950 e 1960 marcam um expressivo crescimento das Universidades no país, e a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 é um marco normativo importante para entender como se consolidarão os cursos de graduação e pós-graduação, como nota Anísio Teixeira ([1989] 2005). Com esta Lei, e com a Reforma Universitária de 1968, o sistema universitário brasileiro se afasta de suas tradições mais humanistas e “contemplativas” para uma orientação mais profissionalizante e “técnica”; esta orientação, por sua vez, se por um lado ampliou o número de universidades públicas federais, visou também coibir uma produção científica que fosse mais autônoma (ou “nacional”) e crítica ao regime golpista instalado em 1964 (Ribeiro, 1978).

O ano de 1971 pode ser considerado um divisor de águas neste contexto – ao menos do ponto de vista institucional – pois foi nesta data que se criaram oficialmente os dois primeiros cursos de pós-graduação strictu sensu em geografia no Brasil: o Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana (PPGH) e o Programa de Pós-Graduação em Geografia Física (PPGF) da Universidade de São Paulo (Silva, 2011). Durante praticamente toda a década de 1970 e 1980 estes dois PPGs “monopolizaram” a oferta de cursos doutorado no país, sendo que neste período apenas sete novos cursos de mestrado e um de doutorado foram instituídos, de forma bastante desigual do ponto de vista de sua distribuição no território (com grande concentração nos estados do Sudeste) (Aguilar et al, 2023). As primeiras dissertações e teses defendidas após essa instituição dos dois programas se deram a partir do ano de 1978, e desde então, já foram defendidas 1745 pesquisas no PPGH: 770 teses e 975 dissertações (Sistema Janus/USP), um número significativo, como mostram também Carlos e Cruz (2024).

No final da década de 1970 / começo da década de 1980, um importante movimento de renovação da geografia brasileira tem início, sendo um de seus polos principais o PPGH-USP: trata-se da difusão do que se convencionou chamar de “geografia crítica”, isto é, uma geografia que permitiu aos seus protagonistas se posicionarem “por uma transformação da realidade social, pensando o seu saber como uma arma deste processo” (Moraes, 1987, 112). A geografia crítica teria como uma das principais “tarefas históricas” se contrapor ao “paradigma ambientalista” – já mencionado –, mas também à chamada geografia quantitativa, que havia ganhado importância em outros programas de pós-graduação no contexto da ditadura militar. Uma das principais funções da geografia crítica seria a contraposição ao caráter empirista e pouco afeito à compreensão crítica da realidade destas correntes de pensamento em vigência até então. A grande inovação do ponto de vista epistemológico que passa a ser praticada no PPGH é a incorporação sistemática dos pressupostos teóricos e filosóficos do marxismo, e das teorias anti-imperialistas que vigiam à época. Do exterior, o livro que mais influenciou esta geração de professores engajados do PPGH foi A geografia: Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, de Yves Lacoste (1976); e do Brasil, a obra mais marcante foi Por uma geografia nova, de Milton Santos (1978) (Silva, 1984).

Foi neste contexto também que outro evento fundamental na história do PPGH se deu: a chegada do Professor Milton Santos, que passou a ser parte do quadro de docentes no ano de 1984, tendo orientado no PPGH ao total 13 doutorados e 6 mestrados. Santos já era um nome conhecido e reconhecido na geografia brasileira e mundial, e sua atuação foi fundamental para o início da internacionalização sistemática do Programa (que era até então formado em sua quase totalidade por docentes paulistas e/ou paulistanos).

Esta história, e a contribuição nela de todos os docentes, alunos e funcionários do PPGH, fizeram deste Programa o maior do país: neste ano de 2024, lecionam no PPGH 36 professores-orientadores, sendo 30 permanentes e 6 colaboradores; estão matriculados 296 alunos, sendo 140 de mestrado e 156 de doutorado. Também em função desta escala, e da diversidade de temas e problemas enfrentados nas pesquisas aqui desenvolvidas, desde o ano de 2015 o PPGH está estruturado em 7 linhas de pesquisa:

1. Teoria e método em geografia

2. Geografia política, planejamento e recursos naturais

3. Cartografia, geoprocessamento, imagens e representações do espaço geográfico

4. Geografia da cidade e do urbano

5. Território, economia e dinâmicas regionais

6. Geografia, educação e ensino

7. Território, agricultura e sociedade

Cabe frisar que estas sete linhas procuram abrigar um conjunto de investigações sobre objetos e desafios centrais do país, assim como permitem a convivência profícua de docentes (e pesquisadores) com diferentes visões do que é a geografia, e de como desvendar a realidade do Brasil e do mundo contemporâneo. Uma das principais riquezas do PPGH, portanto, é a diversidade de perspectivas teórico-metodológicas de seus docentes, e a possibilidade de debates e avanços que esta diversidade enseja. Esta pluralidade, por sua vez, está registrada e disponível ao público em depoimentos colhidos por ocasião do 50º aniversário de Programa (2021), e que podem ser consultados no seguinte endereço: https://www.youtube.com/@PPGHUSP

Cabe destacar que o PPGH sempre fez um esforço para comunicar, para além de nossa comunidade, os resultados das investigações que são aqui realizadas. O acesso a este rico acervo de resultados de pesquisa pode ser conseguido no banco de teses do Programa, disponível gratuitamente na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP (https://www.teses.usp.br/). É importante registrar que existem atualmente dois outros veículos de divulgação da produção acadêmica do PPGH: a Revista do Departamento de Geografia e a Geousp, que contribuem também para os debates sobre praticamente todos os temas de relevo da geografia física e da geografia humana brasileira contemporânea. A Revista do Departamento é publicada desde 1982, e a partir de 2010 se tornou eletrônica. Já a Geousp foi criada em 1997 e passou a ser apenas digital no ano de 200; desde o ano de 2021 faz parte da Coleção SciELO Brasil e é ranqueada como A1 no Qualis CAPES atual.

Na esteira dos processos mais recentes de democratização do acesso e da permanência de alunos do país inteiro no PPGH, vem sendo adotado a partir de 2018 um sistema de cotas étnico-raciais, que tem permitido que o corpo discente seja mais plural e diversificado do ponto de vista social e de sua origem geográfica.

Ainda que estes avanços todos tenham sido alcançados no PPGH, resta muito a ser feito, e os desafios são enormes. Permanecem como riscos à produção do conhecimento autônomo e crítico o fato de que é cada vez mais presente, mesmo nas universidades públicas, um aumento da influência de visões de mundo privatistas e instrumentalizadoras da produção científica. Os riscos para a adoção de pautas de pesquisa – e de matrizes de conhecimento – estranhas às demandas mais prementes e legítimas do país são enormes; muitas vezes estes riscos são majorados pelas próprias pressões exercidas por agências de fomento, assim como pela “burocracia” das universidades.

Cabe à comunidade científica brasileira, assim como seus campos disciplinares e programas de pós-graduação – como é o caso do PPGH – este papel emancipador, mantendo sua postura reflexiva e problematizadora da realidade, buscando através da criação intelectual e da pesquisa rigorosa, formas de melhor entendimento e transformação democrática do mundo contemporâneo.

 


REFERÊNCIAS

Aguilar, R. L., C. N. Fonseca e P. Christian. A expansão da pós-graduação em Geografia no Brasil entre 1991 e 2020. In Terr@Plural Vol. 17. 2023. pp. 1-19.

Antunes, C. F. A Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB. Origens e transformações. Rio de Janeiro: Consequencia. 2023.

Carlos, A. F. A. e R. A. Cruz. O programa de pós-graduação que inovou e ajudou a mudar o pensamento geográfico no Brasil. In Jornal da USP 04/10/2024. Disponível em https://jornal.usp.br/?p=812070 (Acesso em 18.10.2024)

Conti, J. B. A contribuição da Geografia da Universidade de São Paulo para a construção da Geografia Brasileira. In Boletim Paulista de Geografia Vol. 100, 2018. pp. 85-95.

Corrêa, R. L. Região e organização espacial. São Paulo: Ática. 1987.

Monteiro, C. A. F. Geografia no Brasil (1934-1977). Avaliação e Tendências. São Paulo: Instituto de Geografia/USP. 1980.

Moraes, A. C. R. Geografia: Pequena História Crítica. São Paulo: Hucitec (6ª ed). 1987.

Penha, E. A. A criação do IBGE no contexto da centralização política do Estado. Novo. Rio de Janeiro: IBGE. 1993. 123 p.

Ribeiro, D. A Universidade necessária. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1979.

Roiz, D. S. O Curso de Geografia e História da FFLC/USP e a constituição de um campo disciplinar em São Paulo (1934-1968). São Paulo: Alameda. 2021.

Schwartzman, S. Formação da comunidade científica no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional / FINEP. 1979.

Silva, A. C. A Renovação geográfica no Brasil – 1976-1983 (as geografias crítica e radical numa perspectiva teórica). In Boletim Paulista de Geografia n. 60. 1984. pp. 73-140.

Silva, J. B. A Pesquisa e a produção geográfica. In Revista da ANPEGE, Vol 7 (1). 2011. pp. 135-146.

Teixeira, A (1989). Ensino superior no Brasil. Análise e interpretação de sua evolução até 1969. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. 2005.